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Peça na programação paralela da Flip retrata rivalidade entre Lima Barreto e João do Rio

‘Diários marginais’ leva à cena encontro imaginário entre cronistas do Rio da Belle Époque

Gilson Gomes (à esquerda) vive Lima Barreto e Wagner Brandi é João do Rio na peça
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Divulgação/ Leonardo Pergaminho
Gilson Gomes (à esquerda) vive Lima Barreto e Wagner Brandi é João do Rio na peça Foto: Picasa / Divulgação/ Leonardo Pergaminho

PARATY — Num espaço de menos de três meses, o ano de 1881 deu ao mundo dois dos maiores cronistas da história do Rio de Janeiro: Lima Barreto e João do Rio. Mulatos, mordazes e contemporâneos, os escritores ajudaram a moldar no imaginário literário brasileiro as ruas e os personagens da então capital do país, que vivia a efervescência da Belle Époque. Os autores, contudo, não eram amigos. Muito pelo contrário. As farpas da inimizade eram públicas e notórias. Esse atrito é o mote da peça “Diários marginais: um encontro com Lima Barreto e João do Rio”, que a Oráculo Cia de Teatro apresenta, hoje e amanhã, pela programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no colégio estadual Cembra.

Com direção de Luiz Furlanetto, vencedor do prêmio Shell de melhor diretor por “Trainspotting”, adaptação do romance homônimo de Irvine Welsh, em 2002, o espetáculo simula um bate-papo entre os escritores durante delírios de Lima Barreto em seu leito de morte, na Limana, sua lendária biblioteca particular.

— Começamos a pesquisa para a peça em 2002. Nos treze anos de investigação até a sua estreia, em 2015, ninguém soube nos dizer de registro de algum encontro entre eles dois. Então, resolvemos criar esse tête-à-tête fictício sobre dois personagens que se odiavam através de colunas e crônicas de jornal — conta o ator Gilson Gomes, intérprete de Lima, que assina o roteiro ao lado de Wagner Brandi, na pele de João do Rio.

A peça, que mistura textos publicados pelos autores na imprensa e trechos de ficção, pontua semelhanças e os pontos de discórdia entre os dois.

— Ambos tinham o mesmo sobrenome (João do Rio é pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto), eram mulatos e tinham um olhar até parecido sobre o Rio, apesar do Lima ter sido crítico ferrenho da modernização elitista imposta na cidade, enquanto o João se banhou nessa ebulição — enumera Gomes.

Autor do livro “João do Rio: a cidade e o poeta”, o historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues aponta alguns dos motivos da intriga entre os intelectuais:

— O João gostava de futebol (então um esporte praticado apenas pelas elites), atividade que o Lima odiava. O João entrou para a Academia Brasileira de Letras. O Lima, que tentou ingressar três vezes na ABL, não. O João não era da boemia mais pesada do Lima, que sempre foi uma figura radical e crítica — compara Martins Rodrigues.

Lilia Moritz Schwarcz, autora da biografia “Lima Barreto: Triste visionário”, corrobora a tensão entre os dois.

— A relação do Lima com o João é de abismar. Ele trata o João com muito sarcasmo, com termos terríveis, inclusive sobre pederastia. E ele fica danado da vida quando aceitam seu arquirrival na ABL. Numa conversa com Monteiro Lobato, ele “descaceta” o João — diz Lillia.

Apesar do conflito, Lima e João encontraram a mesma morada final. Estão enterrados no cemitério São João Batista, em Botafogo, zona sul do Rio.

— O enterro do João do Rio fez a cidade parar, numa tumba enorme, cheia de pompa. Já o Lima precisou de uma vaquinha dos amigos para ser enterrado no São João Batista, num jazigo simples. Isso mostra a ambiguidade do Lima, um crítico dos abastados, mas que quis ser enterrado num cemitério de ricos. Ele dizia que o cemitério de Inhaúma não tinha ares de repouso eterno, que parecia uma repartição pública. A peça funciona como um acerto de contas entre essas duas grandes figuras — resume Gomes.