CRÍTICA TEATRAL DIÁRIOS MARGINAIS
Lima
Barreto e João do Rio em cena
Diários marginais, peça dirigida por Luiz Furlanetto e encenada pelos atores Gilson Gomes e Wagner Brandi, é uma iniciativa das mais ousadas e bem-sucedidas na atual cena teatral. Ao promover um encontro imaginário entre os escritores Lima Barreto (1881-1922) e João do Rio (1881-1921), transpõe-se para o teatro a obra e a trajetória de dois autores que fizeram de sua literatura uma forma de participação efetiva no movimento da história dos nossos primeiros anos de república. E o desafio é enorme, considerando a prolífica produção literária de ambos, que foram também cronistas e críticos implacáveis das mazelas decorrentes do processo de modernização engendrado nas primeiras décadas do século XX.
Lima
Barreto e João do Rio reviraram a capital republicana, levando para seus
artigos e crônicas publicados em jornais e revistas da época, bem como em seus
livros, o avesso do progresso tão alardeado pelas elites políticas daquele
tempo. Embora tivessem origem social semelhante, trilharam caminhos distintos.
João do Rio obteve reconhecimento entre seus pares ainda em vida, sendo
inclusive eleito para a Academia Brasileira de Letras. Já Lima Barreto amargou
o desprezo dos críticos e só após a morte sua obra obteve amplo reconhecimento.
Foram assim, de certo modo, rivais na busca pelo ingresso no olimpo das letras,
mas curiosamente cultivaram admirável sensibilidade em relação às camadas
populares e suas lutas pela sobrevivência. Do mesmo modo que Lima Barreto
introduziu os subúrbios no horizonte da literatura, João do Rio retratou A alma encantadora das ruas – título de
um dos seus livros mais conhecidos. Mas não frequentavam as mesmas rodas
intelectuais, não conviveram, não confrontaram suas visões de mundo em
encontros presenciais.
Portanto,
seria tentador imaginar um encontro entre os dois escritores. Sobre o que
conversariam? Que rumo tomaria essa prosa? Seriam capazes de perceber as suas
afinidades, à despeito das diferenças entre ambos? Só mesmo o teatro poderia
promover esse encontro de forma tão magistral como acontece em Diários marginais. Gilson Gomes e Wagner
Brandi colocam Lima Barreto e João do Rio frente a frente, olho no olho,
passando à limpo as dores e as delícias de exercer o ofício da literatura no
Brasil recém-saído da escravidão e em pleno processo de estruturação do regime
republicano em que vivemos até hoje, com seus hipócritas valores burgueses.
Aliás,
a peça apresenta oportuna interlocução com o tempo presente, marcado por uma
crise profunda, ao expor dois personagens que se debatem para fazer de seus
escritos um instrumento de intervenção na realidade e de denúncia daquilo que
não deu certo no Rio de Janeiro do início do século XX. Promover um encontro
entre Lima Barreto e João do Rio guarda um simbolismo muito eloquente que
indica o quanto o diálogo é indispensável, sobretudo com aqueles que dão voz às
ruas, aos subúrbios e às periferias de todo o país.
Denilson
Botelho
Professor
de História do Brasil da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Autor do
livro A pátria que quisera ter era um
mito, ganhador do Prêmio Carioca de Pesquisa.